terça-feira, agosto 03, 2010


O dom está em ti

(2 Tim 1, 6 – 11)

A melhor forma de agradecer um dom é aceitá-lo e acolhê-lo, dar ao outro a alegria de o poder dar. E recebê-lo, agradecido, é cuidar dele. Cuidar para que não desapareça, para que não se extinga. Então, reavivar o dom de Deus que está em nós é um desafio, uma necessidade e uma oportunidade. Desafio porque se dele não se cuida pode perder-se; necessidade porque sem dele se cuidar também não há crescimento; oportunidade porque no cuidar, que também é uma forma de alguém se dar, se experimentam capacidades porventura ainda desconhecidas. Cuidar do dom é recebê-lo activamente, cuidar do que é dado como semente para fazer desenvolver.

O verbo “reavivar” que a Carta a Timóteo (2 Tim 1, 6) utiliza é o mesmo o verbo que se utiliza quando se trata de significar o avivar ou o reacender de um fogo. E isso é extremamente expressivo para as nossas vidas na medida em que o Espírito Santo é descrito muitas vezes como fogo e na medida também em que a sua vinda é descrita sob a forma de línguas de fogo. E é nesse sentido que é extremamente interessante que seja dito que o homem tem responsabilidade em reavivar em si mesmo o dom de Deus. Significa que para acolher um dom tem de se entrar na lógica do que é gratuito, na lógica da capacidade de admiração, na lógica do extasiamento, na lógica do que dá com alegria de dar e sem estar a prever a recompensa.

Se Paulo desafia Timóteo a reavivar o Dom de Deus podemos concluir da possibilidade do dom desaparecer por falta de cuidado de quem o recebe e o vive. Isso seria uma hipótese na vida de Timóteo a quem Paulo escreve e será sempre uma hipótese na vida dos crentes de todos os tempos.

No caso concreto de Timóteo trata-se do dom que recebeu pela imposição das mãos, podemos dizer o dom da ordenação para o ministério na Igreja, dom do Espírito de Deus que o capacita para assumir aquilo a que Deus o chama.

No caso dos crentes de todos os tempos, no nosso caso de cristãos, em que outros dons se manifestará o grande e primeiro dom do Espírito Santo? Seguramente em muitos. Recebemos tantos durante a vida.

Podemos reflectir nos principais e estruturantes dons da vida, da fé, do Baptismo (Sacramento da Ressurreição como lhe chama Sto. Agostinho); os dons da caridade, da sabedoria, da ciência, do conselho, da fortaleza, da alegria, da paz, da bondade e da benignidade, da paciência, da temperança, da justiça, da paz. Podemos pensar nos dons da capacidade de comunhão, da família, dos filhos, dos pais, do bem-fazer, do bem-querer, enfim, do Espírito Santo. Podemos pensar nos dons da vida religiosa, do matrimónio, do sacerdócio, dos diversos serviços e missões na Igreja e onde vivemos.

E podemos pensar nos imensos com que se constrói a vida de quem está a caminho e de quem continuamente se supera: o diálogo, a relação de amizade, a maturidade, o bom uso de bens materiais, as capacidades intelectuais, o deixar-se motivar e guiar pela Palavra de Deus, a transparência, a sinceridade, a partilha de bens e de vida, a capacidade de amar, o realismo, a fidelidade, a lucidez, o equilíbrio, a generosidade, a capacidade de colaboração e de compromisso, o desprendimento, a humildade, a coerência, a participação no bem comum, a confiança, o bem-pensar, bem-dizer e bem-fazer. Tanto e tantos que constituem a trama e o tecido da nossa vida de todos os dias e que, necessariamente, se não se reavivam podem acabar por desaparecer.

Presente em muitos destes dons, o grande dom da vida de Deus em nós é o que nos faz experimentar que há mais alegria em dar do que em receber. É o que nos faz experimentar que é quando damos que recebemos, que apenas quando damos estamos preparados para saber receber. A verdadeira liberdade consiste não em dispor dos outros, mas sim em estar disponível aos outros. Esse é um dom que nunca poderá desaparecer das nossas vidas.

E como se extinguiriam ou ofuscariam os dons de Deus e, nomeadamente, o dom do seu Espírito que é a sua vida e o seu calor? Dar apenas quando se recebem contrapartidas, dar para se admirar a si mesmo, dar ficando prisioneiro da sua virtude e do dar, não saber receber gratuitamente, não saber dar ao outro a alegria de se poder dar, receber na indiferença sem capacidade de admiração e de gratuidade são, entre muitas outras, atitudes que extiguiriam compulsivamente o dom e capacidade para o cuidar.

Podíamos resumir esses imensos perigos na solidão de quem não ama ninguém porque está apaixonado de si mesmo, aquele a quem a auto contemplação de si mesmo basta. Uma solidão sem partilha, uma solidão agressiva e defensiva dos possíveis intrusos que, ao limite e no fim de tudo, até seriam a ponte para a alegria. Nada tentar, com nada se admirar, com ninguém se entusiasmar, a nenhum projecto ser capaz de aderir, nada desejar ... isso é extinguir o dom.

Mas se olharmos bem para nós, se entrarmos bem dentro do nosso coração e formos aonde ele nos levar, percebemos que somos sempre mais felizes quando confiamos do que quando desconfiamos, percebemos que somos sempre mais felizes quando damos do que quando recebemos. É a nossa semelhança com Deus. É quando amamos e perdoamos que nós nos tornamos mais semelhantes com Deus. É nessa experiência incontornável que nos apercebemos melhor da nossa identidade e da semente que é preciso cuidar, o dom que é preciso reavivar.

Somos versáteis, somos até distraídos, confundimo-nos e confundimos os outros até sem querer, enredamo-nos nos nossos problemas, antepomos as nossas soluções sem ser por maldade, enganamo-nos na leitura dos sinais, às vezes optamos alicerçados em falsos fundamentos. Então é preciso cuidar do dom. Cuidar desse imenso dom da semelhança com Deus que nos faz vibrar de alegria e de harmonia por receber de graça e dar de graça. Somos uma ânsia em busca de harmonia, de afecto e de sentido e só aderimos àquilo que percebemos como oferecendo-nos esse valor, Deus, o Dom. É preciso cuidar do dom e do dinamismo do dar. Pessoalmente e em Igreja.

A nossa Diocese prepara-se para entrar em Sínodo. É uma experiência de caminho em conjunto (nos Grupos, nos Movimento, nas Paróquias, na Diocese, na Igreja) a que nos convida o nosso Bispo para avaliarmos, aprofundarmos, descobrirmos melhor a identidade da Igreja e podermos projectar, a todos os níveis, uma Igreja que seja mais fielmente o rosto de Jesus Cristo. Então, para o fazer, é preciso reavivar o dom de Deus que está em nós. E assim tudo correrá bem.

Emanuel Matos Silva







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